A historia de Dona Vovó.

Sonia Silva Gomes
5 min readMay 10, 2024

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Minha sogra Olga, carinhosamente chamada de Dona Vovó, era filha de pais italianos. Seu pai Francesco veio para o Brasil em 1887 e era alfaiate de tailleur de senhoras. Conseguiu se estabelecer um bom tempo, num atelier à Rua Santa Efigenia e feito isso voltou para a Italia para buscar uma esposa. Ele era ligeiramente manco, mas era um homem bonito com lindos olhos azuis. Gostou da sobrinha e se casou com ela, a Irma e não sei como a combinação se deu, mas creio que ela não foi consultada, pois já gostava de um rapaz lá em Lucca.

O pai:Edmundo Ciratti

Já casados vieram para São Paulo e juntos tiveram quatro filhos. Um deles, por causa da consaguinidade provavelmente, era surdo mudo. Olga era a mais nova e o que ela contava da disciplina imposta pelo pai parecia historia de terror. O pai saia e ninguem comia o jantar até que ele chegasse. Muitas vezes ela adormecia no colo da mãe e dormia sem jantar.

A mãe Irma era responsavel pelas costureiras que faziam as saias dos tailleurs para os casacos estruturados que ele fazia. O clima no local de trabalho tambem era tenso, ninguem brincava ou cantava.

A mãe: Irma Ciratti

Minha sogra cresceu assim, mas resolveu que ia estudar medicina, mas o pai não permitiu e ela estudou Farmacia. Depois de formada, foi dar aulas na faculdade de Odontologia e conheceu meu sogro.

Meu sogro por sua vez era filho de Manuel, um português e Dona Anna uma brasileira de Ribeirão Preto, bem metida a nobre. Na realidade ela tinha um antepassado nobre e rico, da nobreza criada pelos fazendeiros de café dessa cidade. Porem ela não era rica, mas era metida. O marido, por outro lado, levou um tombo, ficou com muita dor e se tornou viciado em morfina e acabaram se separando. Meu sogro, que era o filho mais velho, ficou responsavel pela mãe e irmãos, trabalhava num cartorio como escrevente e sustentava a familia. Depois conheceu Olga e se apaixonaram. Eles namoraram oito anos até meu sogro conseguir sustentar as duas familias.

Enfim se casaram, contra a vontade de Dona Anna que não gostava de italianos. Ela fez da vida de minha sogra um inferno. Se saiam juntas, ela ia de braço com o filho, se estavam no carro, ela ia na frente.

Minha sogra se esforçava para mostrar que era ótima, não reclamava de nada, mas criava os filhos com muita severidade, como ela tinha aprendido com os pais. A casa era impecavel, limpa, arrumada, comida muito boa, ela sempre arrumada. Os filhos tinha que ser perfeitos e primeiros alunos da classe. Meu marido foi colocado no conservatorio com quatro anos para tocar piano e se formou concertista com quatorze. Eu fui colega de classe dele e o vi muitas vezes tocar no auditorio do Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República, onde estudávamos.

A familia e amigos.

Meu sogro era dentista e foi o primeiro dessa profissão a ter uma maquina de Raio X no consultorio. Ele tambem era funcionario público e responsavel pelos muitos consultorios dentarios nas escolas publicas, que naquele tempo eram as melhores. Mais tarde entrou para a politica e foi deputado estadual. Minha sogra gostou de ser mulher de um deputado e trabalhou bastante ajudando, por exemplo, na Cruz Vermelha.

Parece porem que isso não deu muito certo, porque ele era um homem muito correto e pouco flexivel para ser político. Então perdeu a reeleição e mergulhou numa depressão profunda. Naquele tempo, 1960, não havia esses remédios de hoje e ele passou por outros tratamentos pesados, mas nunca mais foi o mesmo.

Eu entrei na familia quando ele ainda era deputado e estava bem. Ele gostava muito de mim e foi como um segundo pai. A familia de origem dele porem achava que eu era pobre e não servia como namorada e a maioria da familia nunca me enxergou, fingiam que não me viam. Eu nunca dei a menor importancia para isso porque eu sempre fui bonita, inteligente e sabia disso, pois com dezessete anos já tinha entrado na faculdade de arquitetura.

Dona Olga sempre foi otima sogra, realmente eu a considerava uma segunda mãe e a minha mãe tinha ciumes dela. Namoramos quase seis anos e depois de formados e empregados, nos casamos. Para o casamento eu fiz meu vestido e Dona Olga me deu uma renda maravilhosa, italiana, com mais de cem anos, para o bolero do vestido e tambem meus sogros fizeram nossa festa de casamento.

O tempo passou tivemos filhos, meu sogro faleceu e sempre visitamos e recebemos em casa Dona Vovó. Nós acompanhamos e cuidamos dela como ela havia cuidado de nós e de nossos filhos.

Ela teve problemas de visão e ficou quase cega. Nos últimos seis anos da vida dela eu, meu marido, nossa filha e nossa neta almoçamos com ela todos os domingos e o almoço tinha sempre que ter nhoque. Ela faleceu com cem anos e seis meses e para o enterro, como ela era muito vaidosa, coloquei a roupa que ela mais gostava, mandei fazer cabelo, manicure e maquiagem, alem de uma almofada sob a cabeça e ela estava linda. Depois mandei consertar o túmulo, que estava muito caidaço. Meu filho, que se foi, já está com os avós e tambem é onde pretendo ficar depois, junto com eles, no Cemiterio São Paulo, a sombra dos ipês rosa.

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Sonia Silva Gomes

Arquiteta, bruxa, escritora, cozinheira, mãe, avó, bisavó, feliz no casamento.